Transcrição do artigo publicado na Revista GQ - setembro 2020

"A Longa História de Ermelinda Freitas"

Cem anos. Qualquer história que chegue a centenária há de ter muito que contar. A da Casa Ermelinda Freitas é um manancial de histórias. Leonor Freitas, herdeira, presidente e sua grande impulsionadora, contou-nos algumas.

Por Diego Armes. Fotografia de Cheila da Cunha.

Há histórias que precisam de ser encontradas. Esta é uma delas. Foi no meio do processo de absorção da vasta e rica história da Casa Ermelinda Freitas que surgiu aquilo a que podemos chamar "a história das histórias" entre um percurso que é já centenário - é, aliás, o centenário desta célebre Casa vinícola da Península de Setúbal que nos leva até às histórias que fomos ouvir à terra de Fernando Pó, pequena localidade do concelho de Palmeia atravessada por uma linha de comboio e uma estrada municipal.

Tudo em redor são vinhas, vinhas a perder de vista. E muitas dessas vinhas pertencem a Ermelinda Freitas, uma Casa que tem várias longas tradições, a mais conhecida das quais é, provavelmente, ser gerida por mulheres. "São para cima de 500 hectares", dirá mais adiante Leonor Freitas - líder em funções desta Casa gerida por mulheres que já tem na filha, Joana, uma herdeira para o futuro e em perfeita sintonia com a linhagem que a precede: lutadora, perseverante, sagaz, tudo adjetivos que a qualificam - acerca da área de vinha que detém ali em redor. "Para cima de 500, penso que não chega aos 600." No meio da conversa, há de recordar, a propósito desta enormidade de hectares, que certa vez, em Bordéus - nós havemos de chegar a Bordéus, embarcámos nesta viagem só para chegar a Bordéus -, tentou não dizer a ninguém que era dona de 60 hectares (na altura eram apenas 60) porque, por lá, pessoas que tinham 6 hectares de vinha eram tidas como grandes proprietárias. "Havia quem visitasse as próprias vinhas de helicóptero... 6 hectares", conta Vítor Santos, diretor de Marketing da Casa que teve a gentileza de nos receber. Vítor diz isto, ri-se e abana a cabeça como quem diz "que disparate, sabem lá eles o que é vinha a perder de vista".

No centenário da Casa impunha-se uma conversa com a Sra. do Castelão 

AS CASTAS

"O nome da terra vem do navegador português [do séc. XV] Fernão do Pó", conta Vítor, "que aparentemente tinha o hábito de dar o próprio nome às terras onde chegava". Não terá sido o primeiro português a chegar a este lugar - e muito menos terá navegado até aqui, apesar da proverbial riqueza aquífera destes solos, trespassados por um gigantesco lençol freático -, mas o certo é que o lugar lhe adotou o nome. É precisamente essa extraordinária riqueza aquífera, juntamente com os solos arenosos, dispostos numa extensa e ampla planície, temperados pelos ventos quentes vindos de sueste e pelas brisas marítimas - que o mar é logo ali, a duas dezenas de quilómetros - que faz da região de Palmeia, em geral, e das terras de Fernando Pó, neste caso específico, um terroir tão especial e profícuo.

Nestes terrenos, as castas autóctones e que mais abundam são a Castelão (tinto) e a Fernão Pires (branco). Em ambos os casos, castas que se dão muito bem com a areia, com o calor e com a proximidade do mar — e que consomem muita água. "Gosto da ideia de ser conhecida como a 'Senhora Castelão de Palmeia'", confessará Leonor Freitas horas mais tarde, à mesa, enquanto provamos uma seleção de vinhos da sua casa. Mas vinhos de outras castas que não o Castelão nem o Fernão Pires: "A Dra. Leonor", revela Vítor enquanto contemplamos a gigantesca vinha diante do edifício principal - longa, direita, praticamente plana, com as plantas altíssimas -, "a Dra. Leonor gosta de descobrir as novidades de castas e gosta de as trazer para cá, mesmo castas estrangeiras"  - "que eram as que cá estavam quando eu cá cheguei", dirá Leonor Freitas -, encontramos, por exemplo, Touriga Nacional, Trincadeira, Syrah, Aragonês, Alicante Bouschet, Touriga Franca, Merlot ou Petit Verdot, entre as tintas; e Chardonnay, Arinto, Verdelho, Sauvignon Blanc e Moscatel, entre as brancas. "Recentemente, adicionámos a Carménère [tinta chilena], a Riesling [branca, da Alsácia] e Gewúrztraminer [também branca, também da Alsácia]."a

"Vivíamos num apartamento em Setúbal." - Leonor Freitas

A LUTA DE LEONOR

O edifício original da herdade é hoje o museu. Aqui podemos encontrar uma parede com fotografias contando resumidamente a história dos elementos da família através das gerações até Ermelinda Freitas, mãe de Leonor. Num dos compartimentos, estão expostos artefactos e instrumentos característicos de várias épocas remotas do século XX e que simbolizam um certo modo de vida rural. Há balanças e alambiques, fogões a gás, copos medidores e, com alguma surpresa, uma máquina de escrever — "o pai da Dra. Leonor era um homem de mente aberta, virado para a cultura, para os livros", explica Vítor Santos, justificando a inesperada presença do objeto ali, entre os outros característicos de um lugar e de um tempo em que as letras tinham tanto de raridade quanto de luxo. Leonor Freitas confirmará esta ideia, "o meu pai sempre quis que eu estudasse - e eu, que sempre quis ir para fora daqui, fiz tudo para cumprir com as exigências dele e poder estudar até ao fim".

Numa outra divisão fica a adega original, praticamente intocada. Apesar de ser antiga e de ser, na herdade, tida como obsoleta, a verdade é que era uma adega bastante tecnológica para o seu tempo e a sua dimensão era também respeitável - não se trata de um pequeno cubículo primitivo, muito longe disso.

Leonor Freitas aproveitará, quando falarmos acerca da sua juventude e dos seus estudos, para contar que a oportunidade que teve de estudar se deveu a uma conjugação de fatores. Para começar, a já abordada abertura de ideias do seu pai. Depois, o facto de ser filha única, que permitiu aos pais - pessoas com uma boa condição socio económica, claro, mas longe de serem ricos (a riqueza das pessoas há mais de meio século, no mundo rural, era os campos que tinham e o que podiam produzir - no caso, leite e queijos, culturas de vegetais e fruta, e obviamente o vinho) - que lhe proporcionaram os estudos avançados que acabou por concluir (estudou primeiro em Setúbal, depois em Lisboa). "É que eu nasci prematura", detalhará Leonor Freitas, "e a minha incubadora foi a minha mãe." Foi ali, naquela casa, na remota aldeia de Fernando Pó, que uma mãe nos anos 50 conseguiu dar suporte de vida a uma recém-nascida com 7 meses de gestação. "O meu pai nem a deixava sair da cama. Mas foi a perspicácia dele, e o seu poder de observação, juntamente com o esforço e o calor da minha mãe que me salvaram." O pai usou o exemplo das galinhas para tentar salvar a filha. "Ele disse à minha mãe 'as galinhas abrigam os pintainhos e dão-lhes o calor do corpo, vamos fazer o mesmo com a bebé', e assim foi - e resultou, aqui estou eu." Deste princípio atribulado resultaram duas coisas: primeiro, uma mulher lutadora, que não desiste desde que nasceu, mesmo tendo nascido dois meses antes do tempo; segundo, os pais não voltaram a meter-se na aventura de ter filhos.

A faceta de mulher lutadora estava claramente inscrita no ADN de Leonor Freitas, filha de Ermelinda Freitas, que era filha de Germana Freitas, que era filha de Leonilde Freitas, que foi a primeira de uma dinastia de mulheres à frente dos destinos da Casa que hoje a sua bisneta dirige. Ermelinda, cujo nome batizou a Casa das Freitas, viu-se sozinha quando perdeu o marido e pai de Leonor, Manuel João de Freitas. Foi o fado das mulheres desta família e repetiu-se até à atual geração: ficar viúva cedo. Leonor contará, sempre à mesa, que foi no dia em que perdeu o pai que decidiu mudar-se para a quinta. "Disse ao meu marido 'vamos para lá todos, arranjamos tudo para os miúdos terem condições, e vamos para Fernando Pó'. Na altura isto não tinha assim tantas condições, os miúdos estavam na escola, vivíamos num apartamento em Setúbal." A decisão foi drástica, mas não teve oposição. "O meu marido apoiou-me em tudo. Tem sido extraordinário."

"Disse para o meu marido 'vamos nem que seja de carro'. E fomos." - Leonor Freitas

VIAGEM A BORDÉUS

A decisão de Leonor Freitas foi muito mais do domínio do inevitável do que do impulsivo. Sem o marido, sozinha, sem algo que a prendesse realmente àquela terra, o mais provável seria que Ermelinda Freitas acabasse por vender as propriedades. "Isso é que eu não queria que acontecesse", confessa Leonor, a quem o apelo das origens tocou mais forte e mais fundo do que a inicial vontade de deixar aquele sítio. "É por isso que faz bem ir para fora, estudar, conhecer pessoas e lugares, abre-nos a mente e aprendemos a valorizar de outra maneira." Leonor chegou, com a família e as bagagens, instalou-se, começou a trabalhar. "Quando cheguei, tínhamos 60 hectares." Nem tudo era vinha, havia outras produções."E o vinho era a granel, não engarrafávamos." Uma das primeiras e mais importantes decisões foi concentrar a produção da quinta apenas no vinho. Mas Leonor de vinhos não percebia. Então, fez o que uma mulher de luta faz: foi aprender. Estudou, leu e perguntou. Frequentou cursos, integrou comissões. Aprendeu com o tempo, com os erros e com as experiências. 'Acredito que parte do nosso sucesso se deva a essa postura. É que, quando eu aqui cheguei, os outros grandes produtores" - os rivais serão as casas José Maria da Fonseca e Bacalhôa - "achavam que já sabiam tudo e eu tinha a certeza absoluta de que não sabia nada." Isso permitiu-lhe aprender, explorar e inovar. 'A certa altura, lá na comissão vinícola, eles" - Leonor era a única mulher do meio entre os produtores de Palmeia - "falavam da Feira de Bordéus, a Feira de Bordéus para aqui, a Feira de Bordéus para ali, e depois viravam-se sempre e diziam-me 'mas aquilo não é para ti, é só para vinhos engarrafados', e falavam, falavam." A feira era a Vinexpo. Naturalmente, este tipo de situações causa efeitos perversos em pessoas determinadas. "Disse para o meu marido 'vamos nem que seja de carro'. E fomos. Fomos num Renault Clio que ainda hoje tenho. Veja bem que nem me ocorreu fazer a viagem de avião. Foi uma coisa que eu tinha de fazer." Era esta a história que precisava de ser encontrada. "Os hotéis estavam todos cheios, não havia alojamento, mas não quisemos saber: enfiámos a tenda de campismo na bagageira e lá fomos nós. Conduzimos à vez até França, atravessámos Espanha, tudo de seguida." Como tinha ouvido falar da "feira", Leonor não tomou todas as providências. "Pensei que ia para uma feira, sei lá, com bancas, levei roupa descontraída. Só quando entrámos percebi que se tratava de algo muito formal, muito solene. Tratavam os vinhos como jóias. E encontrei lá aquele que é hoje o nosso enólogo, o Jaime [Quendera], andava lá maravilhado com aquilo tudo." Nessa ocasião, esta história centenária tomou um novo rumo. "Foi então que decidi: vamos fazer vinho engarrafado." A primeira edição de Terras do Pó em garrafa chegou ao mercado em 1997. O resto é história, uma história de sucesso.

Foto de Carolina Alves

EXPANSÃO

Hoje em dia, a Casa Ermelinda Freitas já não produz exclusivamente na Região de Setúbal, sub-região de Palmeia. A empresa cresceu para o Norte. No Minho, em Póvoa de Lanhoso, juntaram-se as quintas do Bárrio e da Pedreira, num total de 40 hectares, para produzir vinho verde, Loureiro. Ermelinda Freitas chegou também ao Douro, a Vila Nova de Foz Côa, onde se instalou na Quinta de Canivães (dantes conhecida como Quinta do Porto Velho) , onde se encontram 20 hectares de vinha variada, tanto em idade como em castas. Na quinta existem ainda cerca de 5 hectares de olival. Ambos os projetos resultam de uma parceria entre Leonor Freitas e o enólogo Jaime Quendera.